Jocelynne Rainey e Lisa Pilar Cowan
Nota dos editores: Este artigo é da edição da primavera de 2023 da revista trimestral da NPQ, “The Space Beyond: Building the Way.”
Quando Aria Florant, co-fundadora da Liberation Ventures, disse à sua plateia na conferência nacional de 2022 Grantmakers for Effective Organizations (Grantmakers para Organizações Eficazes, em tradução livre) que “[o projeto de] reparações precisa chocar o sistema, precisa desestruturar as narrativas de supremacia branca, fechar a lacuna da desigualdade econômica racial e construir uma cultura de reparo”, surgiu a seguinte questão para nós: Como podemos trazer a inspiração e a promessa do movimento de reparações para a filantropia e como utilizar da melhor maneira a filantropia para apoiar o trabalho das reparações?1
“O sonho americano”, um termo cunhado pelo escritor e historiador James Truslow Adams em 1931, promete que todos os americanos podem obter a riqueza e as vantagens sociais que nos permitirão prosperar “independentemente das circunstâncias fortuitas de nascimento ou posição social.”2 Nas décadas que se seguiram, o sonho americano tornou-se uma promessa de riqueza e fama “do lixo ao luxo”, partindo do princípio de que, se escolhermos trabalhar duro o suficiente, poderemos ganhar mais e possuir mais do que a geração anterior.3 É um sonho que não se sustenta em nossa realidade econômica de crescente desigualdade4 e é uma promessa que nunca se estendeu aos negros americanos e aos povos indígenas, a quem foram sistematicamente negadas oportunidades pelos próprios decretos e leis do governo dos Estados Unidos.5 A economia americana – e seus cidadãos brancos, especificamente – têm sido beneficiada e impulsionada pela instituição da escravidão e pela apropriação das terras indígenas.
Filantropias como as nossas – Robert Sterling Clark Foundation e Brooklyn Community Foundation –, que estão financiando trabalhos para enfrentar a injustiça social, econômica e racial, devem lidar com esta contradição e apoiar o trabalho das reparações.
Acreditamos estar trabalhando em um tempo e espaço de transição. Conseguimos avançar um pouco ao deixar para trás a mentalidade da caridade e o poder de decisão exclusivamente nas mãos dos brancos, e começamos a escutar novas fontes de sabedoria além do tradicional filantropo branco do sexo masculino. No entanto, ainda não estamos vivendo em um mundo emancipado onde o capital é distribuído igualmente e os líderes de nossa sociedade refletem o amplo espectro de humanidade deste país.
Começamos com a convicção de que a filantropia não deveria estar relacionada com resultados individuais ou generosidade individual, mas sim com nosso futuro coletivo e nossa responsabilidade coletiva de uns para com os outros. Acreditamos que é fundamental uma mudança profunda na forma como a filantropia conceitua e implementa seu trabalho, e temos consciência de que fazer essas mudanças irá demandar tempo, pensamento estratégico e perseverança. Temos que acertar a mão.
Estamos analisando qual é a nossa tarefa neste momento: Como podemos, nós que atuamos em fundações e não somos especialistas em reparações, mudar nossos comportamentos e práticas? Como podemos dar aos líderes negros, líderes indígenas e outros líderes não-brancos o apoio que precisam ao mesmo tempo em que ajudamos a criar as condições necessárias para atingir a emancipação coletiva? Muitas de nossas fundações estão ainda engatinhando no amplo trabalho das reparações: avaliação, reconhecimento, responsabilização e ressarcimento.
No momento, existe uma maneira autêntica e eficaz de incorporar uma estrutura de reparação que possa impulsionar o avanço dessa questão?
Uma Estrutura de Reparação para a Filantropia
De onde estamos localizados – em fundações que estão comprometidas com a equidade, mas que se encontram firmemente estabelecidas nos mercados de capital, que possuem estruturas tradicionais de equipe e conselho, e cujas missões buscam justiça racial mas não reparações e emancipação – acreditamos que há alguns passos a dar e algumas práticas que podemos integrar, começando já. Este é um novo território para nós e amigos, colegas e aliados são bem-vindos para nos ajudar a moldar essas práticas, acrescentar outras e difundi-las.
- Fazer o dinheiro chegar aos especialistas. Ao mesmo tempo em que há muito a ser feito internamente e dentro do campo da filantropia, podemos dar financiamentos a organizações que estão criando as condições para reparações e tornando realidade as reparações. Este trabalho está aumentando – está sendo realizado nacionalmente (por grupos como a National African-American Reparations Commission6 e o NDN Collective7) e localmente (por grupos mais novos, como o Where Is My Land8).
- Financiar de forma expansiva, tanto em termos de valor do financiamento como de duração do prazo. Se dermos aos líderes negros, líderes indígenas e outros líderes não-brancos os recursos para sonhar e agir, a mudança irá ocorrer. Porém, isso não pode ser uma bolada inesperada sem continuidade; devemos nos comprometer a financiar as organizações de forma expansiva ao longo do tempo.
- Financiar para vencer. Não devemos usar os líderes beneficiários para ficarmos em evidência, nem devemos financiar seu trabalho e depois abandoná-los à própria sorte sem o necessário apoio e culpá-los pelos resultados. Suas vitórias são nossas vitórias – e o mesmo ocorre com as derrotas – e o caminho para triunfar não é uma estrada reta nem acontece do dia para a noite. Em vez de enfocar dados e relatórios e outras medidas tradicionais de “sucesso”, os financiadores e os parceiros beneficiários devem estabelecer expectativas mútuas e criar uma visão compartilhada de longo prazo do que realmente é o sucesso.
- Ser parte do movimento. Isso não é um trabalho individual; precisamos estar juntos como parceiros e defensores de uma ideia. Há inúmeros grupos de financiadores temáticos dentro do nosso setor dedicados a gerar mais recursos e atenção. As reparações exigem esse mesmo tipo de construção de coalizões. Decolonizing Wealth Project,9 Liberation Ventures,10 e NDN Collective já estão organizando financiadores e criando um ânimo indispensável.
- Incluir reparações em nossas missões e visões. Acrescentar o trabalho de reparações em nossa declaração de missão organizacional e estabelecer uma visão que inclua a emancipação dos negros e a soberania dos povos originários irão indicar explicitamente que acreditamos nesse trabalho, que estamos comprometidos com esse trabalho e que nosso sucesso depende dele.
Com essas amplas recomendações em mente, viramos o espelho para nossas organizações e fazemos essas perguntas a nós mesmos, reconhecendo que não estamos engajados com um verdadeiro trabalho de reparações.
O ferramental Reparations Now Toolkit do Movement for Black Lives nos diz o seguinte:
[As] reparações incluem cinco componentes principais: Cessação/Garantia de Não Repetição, Restituição e Repatriação, Compensação, Satisfação e Reabilitação. Reparações são um conceito estabelecido nas leis internacionais que envolvem formas específicas de reparo junto a indivíduos específicos, grupos de pessoas ou nações por danos específicos que eles tenham experimentado por violação de seus direitos humanos. Dessa forma, as reparações não podem ser alcançadas simplesmente por um “reconhecimento ou pedido de desculpas” ou por meio de “investimentos em comunidades desfavorecidas”.11
Sendo assim, o que podemos fazer para tornar nossas organizações e comunidades prontas para abraçar o pleno trabalho de reparações?
Em primeiro lugar, como urge a estrutura de filantropia de reparação do nosso colega Edgar Villanueva: Reconheça “a história da sua instituição e como a colonização, a escravidão e outras formas de opressão facilitaram a acumulação de riqueza que você protege, faz crescer e distribui.”12
No começo de cada reunião com parceiros beneficiários atuais e potenciais, a Robert Sterling Clark Foundation compartilha a história da fundação e de sua riqueza.13 A esperança é que, ao fazer isso, ilustremos como ela foi acumulada e a ética questionável envolvida. Além disso, a esperança é que fique claro que a equipe da fundação não tem controle nem reivindicação sobre esse dinheiro.
A Brooklyn Community Foundation, por sua vez, foi fundada em 2009 com mais de US$ 70 milhões em ativos de uma fundação privada que havia sido criada pelo Independence Community Bank como parte de sua oferta pública inicial em 1998.14 No entanto, a história do banco em Brooklyn se remete à década de 1850, abrangendo épocas de uma intensa acumulação de riqueza para os moradores brancos e uma explícita exclusão dos moradores negros por parte do sistema bancário e os caminhos fornecidos pelo sistema para uma acumulação de riqueza geracional como a aquisição da casa própria. A imensa desigualdade econômica racial atual em nossas comunidades foi promovida pelas práticas discriminatórias racistas (redlining) por parte dos bancos, inclusive pelos fundadores da fundação.
Em segundo lugar: Nomeie e redistribua “o poder que você adquiriu por sua proximidade à riqueza”. Transforme “competição, compartimentalização e burocracia em [sua] cultura e estrutura organizacional facilitadas pela cultura branca dominante”.15
A Brooklyn Community Foundation adotou uma abordagem de justiça racial em 2014. Isso seguiu um amplo processo de envolvimento comunitário, no qual ficou claro que seu trabalho seria ineficaz, a menos que reconhecesse o racismo sistêmico e se comprometesse a abordar as causas fundamentais. Foi uma mudança que fez a fundação perder alguns membros do conselho e doadores, mas também criou uma nova fonte de ânimo e propósito.
Depois, em 2020, como consequência do assassinato de George Floyd e da indignação nacional que se seguiu, a fundação aprofundou seus compromissos com o grantmaking com base em justiça racial adotando abordagens participativas de grantmaking em todas as suas iniciativas de financiamento irrestrito visando compartilhar plenamente o poder de decisão com as comunidades de não-brancos. Esse momento nacional de impacto fortaleceu seu entendimento de que o trabalho de verdadeiramente redistribuir o poder visando a justiça racial exige que ela entre nele de corpo e alma.
A Robert Sterling Clark Foundation adota e defende, desde 2018, os princípios da filantropia baseada em confiança (trust-based philanthropy) e revela o poder detido pelos fundadores, de forma a atenuar esse poder, reduzir a burocracia e gerar relações de trabalho autênticas construídas a partir de confiança e respeito.16 Em janeiro de 2020, a fundação lançou (em parceria com o Whitman Institute e a Headwaters Foundation) o Projeto Trust-Based Philanthropy, uma iniciativa colaborativa de financiadores com duração de cinco anos para ajudar a transformar o setor. Ela envolve muito mais do que somente o fornecimento de apoio operacional geral; é uma abordagem holística que tem alterado as práticas,17 a cultura,18 as estruturas19 e a liderança20 da fundação. Está focada na equidade, humildade e transparência; reequilibra a dinâmica de poder entre financiador e beneficiário; e constrói relações que honram o modo como tratar os outros no caminho para vencer os desafios tanto quanto o ato de vencer propriamente dito.
Em terceiro lugar: Engaje-se “nos Sete Passos para a Cura [Viver o Luto, Pedir Desculpas, Escutar, Relatar, Representar, Investir, Reparar21] para construir relações autênticas que possam facilitar o reparo junto a comunidades que continuam a ser oprimidas pelo legado da colonização, da escravidão e de outras formas de opressão, além de contribuir para a cura coletiva de todos”.22
Ambas as nossas fundações estão profundamente comprometidas com o passo de escutar. A Brooklyn Community Foundation acredita piamente que as pessoas que estão mais próximas dos desafios estão mais próximas das soluções. Elas sentem a dor de nossos sistemas falidos e possuem a sabedoria para consertá-los. Desde 2022, depois de dois anos de isolamento forçado pela pandemia, a fundação lançou uma nova abordagem para engajamento com a comunidade com sua série anual Listening Tour (turnê de escuta).23 O Brooklyn abriga dezenas de bairros e pequenas vizinhanças, e é dever da fundação sair e ouvi-los em vez de esperar que eles venham até ela – ou depender de intermediários. Em 2022, a fundação promoveu rodas de conversa em 20 bairros com cerca de 200 moradores. Em 2023, irá visitar 10 novos bairros, seguidos de mais 10 em 2024. Continuará esses ciclos de escuta a cada três anos para garantir que seu entendimento das comunidades seja tão dinâmico quanto as próprias comunidades, que esteja sempre construindo novas relações com os moradores e as organizações, e que seja responsável pelos compromissos que assume com cada um deles.
Assim como a Brooklyn Community Foundation, a Robert Sterling Clark Foundation instituiu novas formas de reunir os beneficiários que se concentram na escuta e no aprendizado sobre eles e com eles. Mas ainda há uma longa trilha a seguir e o caminho adiante vai na contramão da maneira como a filantropia organizada tem sido realizada. Seus sistemas não estão configurados para adotar os sete passos para a cura citados acima e a fundação depende dos outros para orientação sobre como atuar, mesmo reconhecendo sua responsabilidade para fazê-lo.
É um trabalho dificílimo, com certeza. Ele desestrutura a forma como a filantropia tem sido realizada e convida a um reexame de tudo – nossos empregos, nossas estruturas de poder, nossos talentos. E os tempos de hoje exigem que façamos esse exame interno sem tirar tempo, dinheiro ou energia do trabalho que estamos financiando. Precisamos trabalhar em nós mesmos, mas não podemos parar de trabalhar para o mundo. É um trabalho duro e confuso, e não há grandes exemplos a seguir. Felizmente, é também um trabalho empolgante e inspirador, e que nos aproxima de um mundo onde todos nós podemos prosperar.
Este artigo foi originalmente publicado na edição da primavera de 2023 da revista trimestral da NPQ, “The Space Beyond: Building the Way.”, www.npqmag.org. Usado com permissão.
Notas
- Trevor Smith and Aria Florant, “Reparations Are Coming: How Philanthropy Must Meet the Moment”, NPQ, 03 de novembro de 2022, nonprofitquarterly.org/reparations-are-coming-how-philanthropy-must-meet-the-moment/.
- James Truslow Adams, The Epic of America (Boston: Little, Brown &, 1931).
- Erin Currier, “The Numbers Show Rags-to-Riches Happens Only in Movies”, New York Times, 01 de janeiro de 2015, nytimes.com/roomfordebate/2015/01/01/is-the-modern-american-dream-attainable/the-numbers-show-rags-to-riches-happens-only-in-movies.
- Alberto Gallo, “How the American dream turned into greed and inequality”, Fórum Econômico Mundial, 09 de novembro de 2017, weforum.org/agenda/2017/11/the-pursuit-of-happiness-how-the-american-dream-turned-into-greed-and-inequality/.
- Janelle Jones, “The racial wealth gap: How African-Americans have been shortchanged out of the materials to build wealth”, Working Economics Blog, Economic Policy Institute, 13 de fevereiro de 2017, www.epi.org/blog/the-racial-wealth-gap-how-african-americans-have-been-shortchanged-out-of-the-materials-to-build-wealth/; Richard Rothstein, The Color of Law: A Forgotten History of How Our Government Segregated America (New York and London: Liveright Publishing, 2017); Departamento de Estado dos EUA, Office of the Historian, “Indian Treaties and the Removal Act of 1830”, acessado em 15 de fevereiro de 2023, history.state.gov/milestones/1830-1860/indian-treaties; e Departamento do Interior dos EUA, Natural Resources Revenue Data, “Native American Ownership and Governance of Natural Resources”, acessado em 15 de fevereiro de 2023, revenuedata.doi.gov/how-it-works/native-american-ownership-governance/.
- National African-American Reparations Commission, “Reparations Plan”, acessado em 15 de fevereiro de 2023, reparationscomm.org/reparations-plan/.
- Nick Tilsen, “Building Indigenous Power and Investing in Indigenous Self-Determination”, NDN Collective, 05 de fevereiro de 2021, ndncollective.org/building-indigenous-power-and-investing-in-indigenous-self-determination/.
- Consulte Where Is My Land, acessado em 14 de março de 2023, whereismyland.org/.
- “Connect. Belong.”, Decolonizing Wealth Project, acessado em 12 de fevereiro de 2023, decolonizingwealth.com/.
- Consulte Liberation Ventures, acessado em 14 de março de 2023, liberationventures.org.
- Andrea Ritchie et, Reparations Now Toolkit (M4BL [Movement for Black Lives], 2019), 27, m4bl.org/wp-content/uploads/2020/05/Reparations-Now-Toolkit-FINAL.pdf.
- Edgar Villanueva, “Decolonizing Wealth Project: Overview, Fall 2022”, PowerPoint presentation for funder briefing, 03 de maio de 2021.
- Lisa Pilar Cowan, “He Put the Funds in Our Foundation: How Robert Sterling Clark Got His Money”, Robert Sterling Clark Foundation (blog), 07 de novembro de 2019, rsclark.org/blog/2019/11/7/he-put-the-funds-in-our-foundation-how-robert-sterling-clark-got-his-money.
- Lillian Simmons, “A Look at Brooklyn’s First Public Charity Foundation”, Epoch Times, alterado pela última vez em 13 de novembro de 2009, theepochtimes.com/brooklyns-first-public-charity-foundation_1520044.html.
- Villanueva, “Decolonizing Wealth”
- “How can philanthropy redistribute power? Here’s how”, Trust-Based Philanthropy Project, acessado em 12 de fevereiro de 2023, trustbasedphilanthropy.org/.
- “Practices”, Trust-Based Philanthropy Project, acessado em 12 de fevereiro de 2023, trustbasedphilanthropy.org/practices.
- “Culture”, Trust-Based Philanthropy Project, acessado em 12 de fevereiro de 2023, trustbasedphilanthropy.org/culture.
- “Structures”, Trust-Based Philanthropy Project, acessado em 12 de fevereiro de 2023, trustbasedphilanthropy.org/structures.
- “Leadership”, Trust-Based Philanthropy Project, acessado em 12 de fevereiro de 2023, trustbasedphilanthropy.org/leadership.
- Edgar Villanueva, “Money as Medicine: Seven Steps to Healing”, Omega Institute for Holistic Studies, 02 de agosto de 2022, eomega.org/articles/money-medicine-seven-steps-healing.
- Villanueva, “Decolonizing Wealth”
- Consulte “Kicking Off Our Listening Tour Across Brooklyn”, Brooklyn Community Foundation, 18 de maio de 2022, brooklyncommunityfoundation.org/blog/2022/05/kicking-our-listening-tour-across-brooklyn.